A Águia de Haia e o abutre de Caxias do Sul: ainda estamos acorrentados a um cadáver?

por Ademir de A. Mendonça Jr.

 

Circula na internet notícia recente, já muito replicada nos portais, sempre com manchetes semelhantes, no seguinte sentido: “Vereador gaúcho ofende baianos vítimas de trabalho escravo”. Trata-se da gravação de uma Sessão da Câmara Municipal de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul. O vídeo está disponível no canal do Portal UOL no YouTube.

O orador é o vereador Sandro Fantinel, do Partido Patriota. Discursa sobre as recentes denúncias de trabalho em condições análogas à escravidão eclodidas em vinícolas do município vizinho, a saber, Bento Gonçalves. O assunto tem causado comoção nacional.

Já de início, é perceptível sua indignação e seu pesar com a situação — a princípio, a reação esperada por qualquer um, dado o contexto. No entanto, o desenrolar do discurso revela, em poucos segundos, que os alvos de sua vergasta não são os acusados, mas as vítimas.

O teor espanta. Tacha as denúncias como injustas e as exigências humanitárias do Ministério Público do Trabalho como um luxo “cinco estrelas”. Recomenda aos agricultores da região que contratem apenas argentinos, pois os “lá de cima” causam “esse tipo de problema”. Para o vereador, “esses baianos” só pulam carnaval, vão à praia e batem tambor.

Quem apenas escuta o discurso pensa se tratar de um áudio vazado — mais uma opinião indizível, verbalizada “no privado” do WhatsApp e trazida a público. A realidade é, paradoxalmente, surreal: trata-se de um discurso público, oficial, declamado a plenos pulmões num parlamento municipal.

Contra a opinião nociva e estúpida do vereador, muitos falarão com melhor propriedade. Cumpre-nos admirar, aqui, a naturalidade do discurso, o tom seguro de quem repete o conhecido e o ensaiado, o ar protocolar, lasso, quase entediado, da Câmara ao receber a mensagem desumana. Cabe-nos apreender o grau de normalização do absurdo, a inclusão da decadência como mero item de uma pauta. Assistimos à barbárie entre bocejos.

Veja-se que não há surpresa pelas acusações (afinal, vinícolas não são hotéis cinco estrelas) — não é esse o ponto martelado por Fantinel. O ponto é que o nordestino (mais especificamente, o baiano) foge e denuncia o crime ao invés de agradecer ao dono do cativeiro pela estadia. Seria, portanto, um ingrato.

E ele não está sozinho em seu posicionamento (nunca estão). O Centro de Indústria, Comércio e Serviços (CIC) de Bento Gonçalves emitiu nota sobre as denúncias na região, atribuindo o problema do trabalho análogo à escravidão à falta de mão de obra causada por “um sistema assistencialista que nada tem de salutar para a sociedade” (a nota completa pode ser lida neste link). Em outras palavras, a vítima é o dono da plantação, não o neoescravo.

Diante desse manicômio, inevitável transcrever neste texto uma pergunta frequentemente repetida pelo Prof. Lenio Streck, um gaúcho que, ao ver essas notícias, certamente se enfurecerá (com as pessoas certas): fracassamos?

No último 1º de março, ironicamente, completou-se o centenário da morte de uma das mais importantes personalidades de toda a história do Brasil: o baiano Rui Barbosa — um ilustre jurista, advogado, político, diplomata, escritor, filólogo, jornalista, tradutor e orador. Não encontrei nos livros de história qualquer menção à habilidade de “tocar tambor”, mas, se soubesse fazê-lo, seria melhor ainda.

Foi, como todos sabem, um abolicionista intransigente. Com a pena e a voz, marcou como nenhum outro o debate sobre a escravidão brasileira, chaga nacional que o incomodou desde muito antes do seu ingresso na política.

Em 29 de abril de 1888, já nas vésperas do sancionamento da Lei Áurea, proferiu um discurso no Teatro S. João, na Bahia, comemorando a enorme vitória humanista de sua época. Suas palavras ecoam hoje com a força assombrosa da contemporaneidade:

Pueril engano realmente, senhores, o dos que veem no abolicionismo o termo de uma aspiração satisfeita. A realidade é que ele exprime apenas o fato inicial da nossa vida na liberdade, o ponto de partida de uma trajetória sideral, que se desdobra incomensuravelmente no campo da nossa visão histórica. Cegos os que supõem na abolição a derradeira página de um livro encerrado, uma fórmula negativa, a supressão de um mal vencido, o epitáfio de uma iniquidade secular. O que ela é, pelo contrário, é um cântico de alvorada, o lema já não misterioso de uma idade que começa, o medir das forças do gigante que se desata. Imaginai Prometeu desencadeado, livre do abutre, ensaiando pela escarpa da montanha os primeiros passos de sua vitória contra a tirania suprema.

Nós éramos um povo acorrentado a um cadáver: o cativeiro. O meio século de nossa existência nacional demarca um período de infecção sistemática do país pelas influências sociais e oficiais interessadas na perpetuidade desse regímen de uma vida abraçada à podridão tumular. Agora, que o tempo acabou de dissolver essa aliança sinistra, vamos encetar a cura da septicemia cadavérica, do envenenamento do vivo pelo morto; trabalho que nos impõe os mais heroicos esforços de reação orgânica, e a que há de presidir o signo redentor do abolicionismo.

Temos gravado no horizonte de nossa história o voo inesquecível da Águia de Haia — a abolição não foi o fim, mas o começo de uma luta. Contudo, a julgar pelo atual planar dos abutres, estamos até hoje acorrentados ao cadáver.

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