A ética e o êxito profissional do advogado

por Ademir de A. Mendonça Jr.

“A ciência não pensa.” – Martin Heidegger

O Direito é uma ciência. Como ciência, possui um objeto de estudo — a saber, a criação e a aplicação da regra jurídica — e desse objeto se ocupa de forma exclusiva. Não é capaz, entretanto, de avaliar-se a si mesmo como parte de um todo do cosmos. Não questiona sua própria existência ou os seus próprios efeitos na sociedade em que existe. Nesse sentido, o Direito não pensa.

O advogado, no mesmo sentido, ocupa-se do Direito e a ele dedica a maior parte de seu tempo. Compõe a sua profissão. Não pode, contudo, se valer dele para avaliar o próprio desempenho como profissional. Não está no Direito toda a medida de sua excelência. Para pensar e refletir sobre própria atuação, o advogado deve ir a outro lugar. Mas aonde?

No Dia do Advogado, proponho pensarmos no papel que a Ética desempenha no exercício de nossa profissão.

O homem ético não é simplesmente um “bom-moço”. É, acima de tudo, o indivíduo que compreende o que é o agir bem e assim o faz. Esse “agir bem” é questão que intrigava a Filosofia já em Mileto, em Éfeso e em Atenas, quando o homem começou a abandonar o mito como filtro de compreensão do mundo. Por consequência, o assunto está imbuído na construção do Direito, tanto na lógica da formação do Estado quanto na construção do padrão de comportamento de seus cidadãos.

A Ética, portanto, integra a advocacia de forma muito mais profunda do que a mera probidade profissional. A Ética, como parte da Filosofia, pensa o Direito e pensa o agir do advogado. O advogado ético pensa.

A Ética, mais do que um termo utilizado para vagamente descrever um “agir bem”, é a parte da Filosofia dedicada à investigação dos princípios que guiam, motivam ou constrangem o comportamento humano. Platão diria que os valores morais (objeto de estudo da Ética) deveriam residir tanto no indivíduo como na cidade (comunidade), e aí estaria o caminho para a felicidade coletiva.

Aristóteles também vê nesse saber o caminho para a felicidade, entendida como o exercício pleno da virtude, ou seja, do exercício da excelência como atividade racional. Em “Ética a Nicômaco”, o filósofo afirma que a excelência intelectual decorre da experiência e do tempo, e que a excelência moral é produto do hábito. Em suas palavras: “É fazendo que se aprende a fazer aquilo que se deve aprender a fazer”.

Immanuel Kant propõe mais:  diz que a Ética deve avaliar a ação em si mesma, independentemente de possíveis recompensas ou resultados positivos. A motivação da boa ação está no dever, um dever que é identificado e identificável pelo uso da razão. Para avaliar se o homem agiu bem, propôs o Imperativo Categórico, resumido aqui:

  • Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da Natureza.
  • Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio
  • Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais

Para Kant, o homem deve saber querer o que se deve querer.

Alguns podem se questionar sobre a utilidade prática disso no exercício da profissão. Pode, por exemplo, atrair mais clientes? Pode trazer reconhecimento? Ou, pelo contrário, apenas tentará o profissional a prejudicar seu cliente em prol de um caprichoso padrão moral pessoal? O que tem a Ética a ver com uma advocacia exitosa?

Quero trazer à exposição, antes de tudo, o que a Constituição Federal espera da advocacia, eis que este é fundamento e a justificação de nossa atuação. Diz o seu art. 133: “O advogado é indispensável à administração da justiça”.

Pensando nisso, apresento algumas notícias relacionadas à nossa formação como profissionais. Peço que leiam mantendo em mente o quanto o exercício da advocacia é intelectual:

·      Em 2007, o Centro de Integração Empresa Escola (CIEE) encomendou uma pesquisa do Instituto Toledo e Associados[1] sobre os hábitos de leitura dos alunos de nível superior. A pesquisa demonstrou que, de cada mil jovens universitários na região Metropolitana de São Paulo:

o   34% não leem com frequência,

o   18% não gostam de ler e

o   16%, leem apenas de vez em quando.

·   Houve uma pesquisa semelhante no Rio de Janeiro, que fez o levantamento sem contabilizar a leitura de livros técnicos ou didáticos:

o   15% dos universitários ainda não haviam lido pelo menos um livro não didático;

o   12% leram apenas um, e

o   36% leram entre um e três livros.

·    Dados do Indicador de Analfabetismo Funcional (Inaf), divulgados pelo Instituto Paulo Montenegro (IPM) e pela ONG Ação Educativa em 2013, apontam que 38% dos universitários brasileiros são considerados analfabetos funcionais[2] — ou seja, são capazes de ler e escrever, mas não conseguem interpretar e associar informações.

·       Em janeiro deste ano, no Distrito de Nova York (EUA), dois advogados foram multados em $5.000,00 por um juiz federal[3]. Os profissionais utilizaram o ChatGPT para produzir suas peças numa ação proposta contra a Avianca. A máquina gerou jurisprudências falsas e os advogados não conferiram. Apenas colaram o texto produzido. Além da multa, os causídicos estão correndo o risco de perder o direito de advogar (BAR).

Muitos advogados dessa estirpe podem ser hoje endinheirados, influentes e, em alguns casos, até admirados. Podemos, contudo, chamá-los de exitosos? A esta altura do texto, já podemos entrever o quanto a Ética predetermina essa resposta.

Mais do que reconhecimento, dinheiro e influência, o êxito é o exercício pleno e consciente da virtude. O êxito não é a linha de chegada, mas o próprio caminho e a maneira de caminhar. Obviamente, não implica na rejeição do sucesso como cotidianamente o concebemos, mas esse desejo não monopoliza ou condiciona o raciocínio do agir bem.

Aqui, faço uma ressalva importante: A Ética não produz um advogado meramente bem-comportado ou submisso. Pelo contrário: como reflexão filosófica que é, ela é um incômodo, um desconforto. É a consciência constante da própria imperfeição e do dever de aprimoramento. É também a dolorosa e, muitas vezes, revoltante consciência da imperfeição do sistema — do dever de preservar o que é bom e trabalhar pelo melhor.

Trata-se do autoconhecimento e da construção de uma visão crítica, tanto de sua atuação quanto do próprio meio em que essa atuação se dá. Trata-se de um compromisso com o trabalho.

Deleuze, no livro “Nietzche e a Filosofia”, diz que a filosofia não serve a nenhum poder estabelecido. A filosofia serve para entristecer. Diz mais: “Uma filosofia que não entristece ninguém, que não incomoda ninguém, não é uma filosofia. Ela serve para causar dano à estupidez, para transformar a estupidez em algo vergonhoso. Sua única utilidade é expor todas as baixezas do pensamento”.

O advogado, sem a Ética, não é capaz sequer de reconhecer o que é o êxito. Sem ela, o advogado não pensa: é apenas um estúpido.


[1] https://portais.ufma.br/PortalUfma/paginas/noticias/noticia.jsf?id=2329

[2] https://www.conjur.com.br/2023-jun-08/senso-incomum-analfabetismo-funcional-direito-texto

[3] https://www.forbes.com/sites/mollybohannon/2023/06/22/judge-fines-two-lawyers-for-using-fake-cases-from-chatgpt/?sh=2cc2d21f516c

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