O gato de Schrödinger jurídico: a procuração como substituta do contrato de compra e venda de imóveis

Ademir de A. Mendonça Jr


 
 

Erwin Schrödinger foi um influente cientista austríaco do século passado. Nobel em física, foi um dos estudiosos que mais contribuiu para o desenvolvimento da mecânica quântica.

Mesmo quem nunca estudou física quântica já ouviu falar do experimento fictício mais famoso de Schrödinger: sugeriu-se colocar um gato, um frasco de veneno e um material radioativo em uma caixa fechada. A ideia era que frasco de veneno se estilhaçaria — matando o gato — caso alguma partícula radioativa circulasse dentro da caixa. Se nada acontecesse, o gato permaneceria vivo.

O curioso é a implicação “quântica” descrita pelo cientista. De acordo com as teorias aplicadas, enquanto a caixa não fosse aberta, as duas realidades existiriam paralelamente dentro dela: o gato estaria vivo e morto ao mesmo tempo. Aberta a caixa, uma dessas possibilidades prevaleceria sobre a outra, e o observador encontraria apenas um dos resultados: o gato vivo ou morto.

O experimento, proposto em 1935, é tratado como um exercício mental — não há registros de gatos (vivos e/ou mortos) encaixotados em laboratórios. Ninguém entre os físicos quer arriscar a crueldade com animais.

No Brasil, embora a comunidade científica seja igualmente respeitosa com os felinos, há quem tenha adaptado o experimento para usá-lo no Direito. Trocaram, contudo, a cobaia: em vez de gatos, usamos negócios.

Vejamos a seguinte história, em versão simplificada do que acontece todos os dias nos cartórios brasileiros:

Pedro negocia com João a compra de um apartamento. Após acertarem preço e pagamento (à vista), dirigem-se ao tabelionato de notas para formalizarem o negócio. O Tabelião lhes sugere o óbvio: lavrar uma escritura pública de compra e venda e registrá-la no Cartório de Registro de Imóveis. Mas Pedro achou caros os emolumentos e não quer pagar agora os impostos da transmissão (ITBI). Além disso, não pretende morar no imóvel — torce por uma valorização geral do bairro em poucos anos. Quer vendê-lo tão logo note a possibilidade do lucro.

Assim, em vez da escritura de compra e venda, optam por uma procuração. João constitui Pedro seu mandatário, com poderes para administrar, negociar e vender o imóvel a quem quiser, pelo preço que lhe aprouver, quando quiser. Mandato irrevogável, irretratável, com todos os artifícios de quem quer fazer uma compra e venda sem declará-la expressamente.

João, o vendedor, sai do cartório com o dinheiro na conta e o imóvel ainda em seu nome. No Cartório de Registro de Imóveis, nada muda: quem consulta a matrícula do imóvel, vê João como dono e nenhuma notícia de que houve algum negócio envolvendo o bem. Pedro, por sua vez, vai para casa de bolsos mais leves e com o traslado da procuração na maleta. Pretende engavetá-la na escrivaninha, envelhecê-la como um vinho.

Anos depois, Pedro retorna à escrivaninha. Encontrou um interessado no apartamento e quer vendê-lo. Crê que tudo permanece como estava no dia em que voltou do cartório. No entanto, o tempo e a natureza jurídica da procuração impuseram sobre o negócio uma infinidade resultados possíveis: a maioria deles absolutamente ruinosos para o comprador.

No tempo decorrido entre a outorga da procuração e a abertura da gaveta de Pedro (pode ser um ano ou uma década), é possível que nada tenha mudado.  O mais provável, entretanto, é que algo tenha acontecido: João se casou, divorciou-se, mudou de nome, deixou de declarar o Imposto de Renda, ou vendeu esse imóvel a outra pessoa, ou virou réu numa ação de execução, ou perdeu uma ação trabalhista, morreu… ou a combinação de tudo isso. Cada uma dessas hipóteses tem o potencial de inutilizar a procuração e, por consequência, impedir a conclusão da compra e venda.

Ao substituir o contrato de compra e venda por uma procuração e, em seguida, guardá-la em casa, Pedro submeteu sua aquisição ao experimento do “gato de Schrödinger”. Efetuou o pagamento e, em troca, ao invés de receber o imóvel, recebeu uma incógnita — seu negócio pode estar válido ou inválido quando chegar o momento de concluí-lo.

A procuração, diz o art. 653 do Código Civil, é o instrumento do mandato. Mandato, por sua vez, opera-se quando uma pessoa pratica atos ou administra coisas em nome de outra. Caracteriza-se pela ideia de representação. Em outras palavras, não é capaz de substituir a compra e venda em si.

Desvirtuada, a procuração submete o mandatário/comprador aos riscos decorrentes da falta de proteção do registro imobiliário. O adquirente mantém o imóvel registrado no nome do vendedor por tempo indeterminado — o que torna o seu negócio inoponível a terceiros, ainda que haja no mandato a cláusula “em causa própria”. 

Em nosso exemplo, João pode, a qualquer tempo, transferir o imóvel ou até mesmo outorgar a terceiros procurações parecidas com a que entregou a Pedro. Pode ter o bem penhorado por um juiz, pode dá-lo em garantia de uma dívida, ocupá-lo. A depender da redação do documento, João pode simplesmente revogar unilateralmente o mandato, restando ao prejudicado apenas a possibilidade de buscar na Justiça indenizações por perdas e danos.

Além disso, o mandatário/comprador também se submete aos riscos inerentes às regras do mandato, que, por sua natureza, está condicionado à vontade, confiança ou saúde do mandante. Em outras palavras, o mandato é uma relação jurídica naturalmente efêmera. O art. 682 do Código Civil elenca as hipóteses de extinção:

  • pela revogação ou pela renúncia;
  • pela morte ou interdição de uma das partes;
  • pela mudança de estado que inabilite o mandante a conferir os poderes, ou o mandatário para os exercer;
  • pelo término do prazo ou pela conclusão do negócio.

Como se vê, o comprador que opta pela procuração como substituta do contrato de compra e venda pode descobrir posteriormente que não é nem comprador, nem procurador. A comodidade do instrumento mais simples sacrifica o próprio negócio.

O Direito, que tem dentre os seus objetivos dar previsibilidade e segurança jurídica às relações civis, não lida bem com esse tipo de simulação. Se o contrato mente sobre sua natureza e resulta na incerteza entre o sucesso e o fracasso, já fracassou. A incerteza em si é a mácula, e ela sozinha é capaz de arrastar os envolvidos para as portas do Judiciário — o que representa naturalmente perda de tempo e de dinheiro. 

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